Enquadramento
Com o estabelecer da população numa zona edificada no sopé das montanhas e em anfiteatro a uma enseada que aporta os navios em segurança dos ventos, nasce uma pequena concentração urbana que será a cidade do arquipélago da Madeira. Com clima considerado de curar doenças pulmonares e terra fértil para cultivo, estabelece-se um lugar de atracção e comércio (do açúcar e depois o dos vinhos) que atraíram à Madeira numerosos estrangeiros.
Corsa transportando cana-de-açucar Início do século XX Fotografia – Museu Vicentes
Povoamento
Foi na ilha da Madeira o primeiro lugar onde se procurou fazer o movimento activo do povoamento, favorecido pelas condições climatéricas e pela produtividade do solo.
No livro “Para a História do Funchal”, António Aragão descreve o aparecimento de uma pequena concentração urbana que se implantou antes de 1425 na zona de Santa Maria do Calhau. Tratava-se de um aglomerado de pequenas construções (casas em geral térreas ou raramente sobradadas e cobertas de palha) onde vivia gente laborial ligada a diversos ofícios (carpinteiros, pedreiros, ferreiros, sapateiros, tecelões, pescadores, entre outros).
Teria sido neste pequeno povoado que surgiu, com o nome de Santa Maria, a primeira rua da Madeira, que corresponderia, mais ou menos, ao traçado actual e terminava num, Cabo do Calhau, hoje Largo do Corpo Santo.
Criaram-se os primeiros centros populacionais, à volta de pequenas capelas. Loteadas as terras, dedicavam-se as gentes ao arroteamento e cultura das suas parcelas à construção de habitações, não só de madeira como de pedra, e à criação de animais. Muitas casas foram cobertas de colmo em palha de trigo, o cereal que mais abundava na ilha.
Capela do Corpo Santo, Zona Velha do Funchal. 2004
Depois, a um ritmo que normalmente se vai tornando cada vez mais celebre à medida que a terra fértil se desenvolve, passando de uma elementar economia de subsistência à riqueza e prosperidade que lhe traz a produção de açúcar, as ruas vão surgindo, em caprichosa e intricada teia: a Rua Nova, a dos Mercadores, a Direita, a do Poço Novo, a do Sabão, a do Capitão, a de São Francisco, a da Carreira dos Cavalos, de João Tavira, além de muitas outras.
Arruamento
Os caminhos foram ramificando, sinuosos, íngremes e estreitos a partir da costa para o interior. À medida que as populações se vão fixado e os povoados surgem, ergue-se uma capela, queimam- se os arvoredos e plantam-se as searas e depois o canavial.
Carro de cesto. Santa Luzia. 1890
Diz Zurara em 1448: “ estava em razoável povoação, cá havia em ela cento e cinquenta moradias, afora outras gentes que aí havia assim como mercadores, homens e mulheres solteiras e mancebos e moços que já nasceram na dita ilha”.
Cadamosto escreve em 1455: “ o país é abundante de água e belíssimas fontes e tem oito regatos muito grandes que o atravessam sobre os quais estão construídos alguns engenhos de serrar (…)”
Em 1495, os moradores ofereceram ao projecto do ouvidor do Duque de mandar «calçar as ruas e fazer de cantaria as pontes de pau», por temerem que os custos de tais obras tivessem como consequência um agravamento do regime tributário.
É apenas no séc. XIX que, não só se dá início, em 1848, à ponte do Ribeiro Seco e às obras de construção da 1a estrada que se lança na ilha, e a que pomposamente se chama de momumental, como ainda se conclui, em 1892, o cais da entrada da cidade, um ano mais tarde se inaugura o primeiro troço do Caminho-de-Ferro do Monte e em 1888 terminam os trabalhos de reconstrução e ampliação do molhe da Pontinha, unindo o ilhéu de S. José ao de Nossa senhora da Conceição.
Isabel de França (inglesa que permanecem na Madeira entre 1853 e 1854) explica que as ruas do Funchal estão «todas pavimentadas de seixos, na sua maior parte aguçados; não têm passeios laterais, de forma que andar a pé não é fácil nem agradável».
É preciso trazer as pipas cheias até ao Funchal. Então, se havia caminho minimamente praticável, vinham puxados a bois.
Hans Sloane (XVII) Uma viagem ás ilhas da Madeira, barbados, Nieves…, (in Madeira Vista por estrangeiros,, coordenação de António Aragão, pág. 161) escreve: « Transportam tudo numa corsa puxada por bois, sendo este o único meio de transporte pelo facto de esta terra ser tão acidentada e íngreme com ruas estreitas (…)»
Isabel de França (inglesa que permanecem na Madeira entre 1853 e 1854) descreve no seu Jornal «Uma Visita à Madeira e a Portugal» a sua viagem da praia ao hotel, que ficava na Rua da Carreira (que era referida como principal rua da cidade), feita em carro de bois, que ela compara com baloiços usados nas feiras de Inglaterra, montados «sobre um trenó, com almofadas e cortinas, e tirado por dois destes bonitos bois pequeninos da terra, de pêlo castanho-escuro.
Os animais não vão a mais de um passo; usam chocalhos no pescoço, e o condutor fá-los avançar gritando sempre, repreendendo, lisonjeando, reproduzindo todo o género de extraordinários ruídos, e dizendo todo o caminho, a curtos intervalos, «Cá para mim, boi, cá para mim Esperto, ou Moreno, ou Bonito». É descrito também um rapaz que corre adiante dos bois, com um trapo que molha em cada levada ou poço que lobriga, e tira para debaixo do trenó a fim de o fazer deslizar melhor.
Como se vê, imagem típica se ainda repete, embora com carácter exclusivamente turístico e folclórico, já que o carro de bois há muito foi ultrapassado pelo automóvel, como transporte utilitário e corrente.
O carro de cesto que tradicionalmente faz o trajecto do monte ao Funchal, e que a inglesa Isabel de França menciona, considera-o como sendo um transporte mais esquisito em relação ao carro de bois. Descreve-o como uma bala disparada a velocidade que atinge e inconcebível e, um mistério como os carreiros o manobram tão depressa e tão afastados dele nunca perdem o domínio do carro e conseguem acelerar ou afrouxar a velocidade.
“Corsa” e “Borracheiros”. Início do século XX. Fotografia Perestrellos.”
Bem se compreenderá a viva impressão sentida por esta recatada dama de Oitocentos, se nos lembrarmos que, mais de um século depois, este inveterado cultor do risco e da aventura que se chamou Ernest Hemingway, não hesitou em considerar a descida do monte em carro de cesto uma das mais fortes emoções da sua vida. Nos finais de mil novecentos e três há introdução do automóvel por Harvey Foster que a princípio com compostura, sem atropelos nem desmandos o estranho aparelho compartilhou ruas e caminhos com as corças e os carros de bois, com os trens e as carroças, até mesmo com os carros de cesto, quando estes, pejados de turistas, coloridos e faladores com pássaros exóticos, desciam vertiginosamente o caminho do monte, em direcção ao pombal.
Do nosso típico meio de transporte, diz Raul Brandão, no livro as Ilhas Desaparecidas, “sem a brutalidade inexpressivas da maquina nem a rapidez estúpida do automóvel, o carro do Funchal que nos permite ver e comentar, dá-me impressão de que voga e de que regressamos ao tempos primitivos e heróicos – e conjuntamente carro e barca”
Eram também utilizados os “corsões” por rapazes e pelos lavradores, para carregar molhos de lenha e de mato para o pasto.
A breve trecho o carro de bois foi convertido em atracão turística e folclórico aguardando à entrada da cidade ou a porta dos hotéis, era a moeda forte do turista apreciador do exótico.
Enquanto não se vulgarizou o uso do gás e da electricidade, continuaram a descer da serra, ao ombro ou em corsa, muita saca de carvão de urze e muita acha de pinho ou eucalipto, ate fogões, fornos e caldeiras.
A medida, porém, que os carros de carga, nos seus variados tipos e tamanhos, foram patenteando méritos e vantagens, tudo isto foi desaparecendo inevitavelmente.
Nos meados da década de 1880, o desenvolvimento dos novos meios de transporte, (locomotiva, avião e automóvel) originou uma espécie de “contracção geográfica”. Levou a que as forças das máquinas substitui-se cada vez mais a força do homem e dos animais. Estes novos transportes, foram travados pelo acidentado do terreno e forte declive.